Um tempo indeciso amedrontava as pessoas. A chuva e o frio não deixavam grandes perspetivas mas, felizmente, o céu abriu ligeiramente e, a partir daí, só umas gotas miudinhas podiam incomodar apenas os mais picuinhas. Tantas caras conhecidas partilham música e experiências, embrulhados na famosa imensidão de tendas que engole todo o parque de campismo. Mas, independentemente dos diferentes motivos que tragam cada indivíduo ao festival, o rio é estadia obrigatória para todos, não fosse a sua beleza ímpar inesquecível, mesmo que neste primeiro dia as condições climatéricas não tivessem sido as mais propícias.
Coube aos The Lemon Lovers o privilégio (ou responsabilidade) de dar início a um dia frenético de espetáculos, que se desdobraram a um ritmo consistentemente avassalador pelos dois palcos do festival. A banda trouxe 7 músicos, e afugentou a chuva até conquistar o sol e o público tímido, que foi chegando a conta gotas. Abriram com “Wiped Out“, mas foi a penúltima música (“Automed“) que realmente me intrigou. Mais arrojada, as brincadeiras interessantes com o reverb da guitarra deram uma intensidade e dramatismo inesperados à canção.
Seguiram-se os Ocenpsiea, com o seu experimentalismo frenético e desafiante a contrastar esporadicamente com a voz feminina. A complexa base rítmica cativava a admiração e o entusiasmo da audiência e cada um dos três solos da música “Quadro Elétrico” fez-se sentir na plateia, desde o toque jazz do piano elétrico ao desconcerto epilético da bateria, sempre envoltos pela teia volumosa de um baixo pulsante.
Dando seguimento a um ping pong incessante que durou até às 3 da manhã, voltei ao palco principal para vibrar com a energia contagiante dos Club Makumba. O delírio do saxofone tenor e a guitarra agreste destacavam-se com destreza do baixo (e contrabaixo) e da bateria.

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Novo salto para o palco secundário, agora para ver uma das atuações que mais esperava: Noiserv. O talentoso músico, perdido numa ilha mareada de instrumentos, montava com cuidado e aprumo cada canção. Através de loops de motivos simples que, juntos, cresciam numa atmosfera única, bela e intimista, o artista apaixonou rapidamente o público. A sua voz grave e as suas harmonias quentes conquistaram mesmo aqueles que não conheciam o seu trabalho. “The Sad Story Of a Litlle Town” trouxe uma batida constante e contida que o balanceou para a belíssima “Neutro“, canção do disco mais recente. Uma percussão curiosa embrulhava-se numa dança mágica com a guitarra, algures por entre as ondas de melodias que ele construía progressivamente. Por fim, ao som da sua própria música (“Don’t Say Hi If You Don’t Have Time For A Nice Goodbye“), despediu-se, já de pé, depois de um dos concertos mais emotivos do dia.

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Antes de um lanche merecido deu para ouvir Pluto, que se revelaram, sem grandes surpresas, um autêntico sucesso. A experiência clara dos músicos a fazer-se notar e a soltar o animal de palco Manel Cruz, que enfeitiçava o público com a sua desvairada alma rockeira. E, como se o concerto não chegasse, o público implorou por uma canção extra, num desejo prontamente saciado pela banda portuense.

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Voltei mais tarde para Twist Connection, no que cedo se desenhou como uma pequena desilusão. Riffs repetitivos e um punk rock demasiado estático para ser divertido não foram o suficientes para justificar a experiência.
Já os You Can’t Win Charlie Brown cativaram-me o interesse. Com uma dedicatória especial para o pobre Pedro (guitarrista), que não pôde estar presente, a banda brindou o Vodafone Paredes de Coura com o indie pop pulsante que os carateriza, rico em harmonias muitíssimo bem executadas com as segundas vozes. A voz sensível de Afonso Cabral (que seria uma das figuras do dia, atuando mais tarde com Bruno Pernadas e protagonizando ainda um brilharete inesquecível com os Moullinex, já no After Hours), servia a música com destreza, proporcionando-lhe uma panóplia de nuances subtis muito bem exploradas.

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Deu tempo de Samuel Úria fundar um clube triste de uma tristeza que não existe com uma música mais antiga do que a maior parte dos espectadores e apresentar os temas mais recentes, ainda novidade para o festival.

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Isto antes de Linda Martini roubarem o palco para se destacarem como as maiores estrelas da noite. A banda culto abriu em grande com o clássico “Eu Nem Vi“. Os ambientes densos, sombrios e retorcidos, cheios de raiva e desnorte, enlouqueciam a multidão, agora com um recinto completamente lotado. Numa vibração estonteante, o delírio absoluto que se vivia no palco consumia o vasto público, desde a primeira à última fila. Naquilo que se desenhava como uma relação inebriada de efusismo e devoção, banda e público faziam-se sentir intensamente.

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Uma parede insana de ruído atravessava todo o recinto e ressoava no peito de cada um como uma selva desesperada e frenética de tensão e “release“. Das profundezas mais obscuras da alma, o André Henriques gritava repetidamente “O chão que pisas sou eu” e “foder é perto de amar se eu não ficar perto“, numa explosão demente de euforia.
Mais tarde foram os Mão Morta a conquistar Paredes de Coura. A incrível e inconfundível voz velha e rouca de Adolfo Luxúria Canibal rasgava sem piedade os instrumentais macabros da banda bracarense. Debitando os seus poemas obscuros com a mestria de sempre, hipnotizava o mar de gente que o defrontava. Um animal medonho alastrou-se pela plateia enquanto Adolfo citava a mais horripilante história de amor (“A Minha Amada“). Mas ele acha que ouviu a sua amada dizer que o amava. E não é só ela, a plateia também fala.

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Os Mão Morta provaram mais uma vez que são uma banda que não envelhece. Um som grotesco mas moderno, enrugado e verdadeiro, cheio de um pânico contido numa angústia gritante.
Finalmente, Sam the Kid fez-se acompanhar por uma orquestra e pelos Orelha Negra, num casamento bem conseguido. Um palco cheio de vida em que até os mortos falaram, com direito a participação especial de Mundo Segundo e até de familiares. A eletrónica e o soul dos Orelha Negra deram uma nova energia à música do rapper, com a orquestra a diversificar ainda mais a paleta de sons disponível, naquilo que foi um concerto eclético cheio de boas surpresas.

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Um primeiro dia intenso e preenchido, com música para todos os gostos, onde a chuva não foi impedimento de um regresso em grande de um dos festivais mais emblemáticos do país. Que venha o próximo!
TEXTO: Lucas Castro
FOTOS: Ana Ribeiro